A descentralização de competências da Administração Central para Administração Local é, em tese, uma boa medida, na óptica da melhoria da qualidade, eficácia e eficiência dos serviços, de natureza pública, a prestar aos cidadãos e às instituições.
No entanto essa descentralização, não deve – nem pode – ser feita numa mera ânsia do aligeirar de responsabilidades por parte do Estado e dos seus organismos centrais, nem sequer feita sob um quadro legal incipiente, muito mais apropriado a propósitos experimentais do que a uma delegação de competências consistente, bem ponderada e capaz de cumprir, sem falhas, os superiores propósitos sob os quais deve ser enquadrada.
Uma delegação de competências desta natureza, em matérias tão importantes como a saúde pública e educação, não pode ser vivida pelas Autarquias e pelas populações sob o princípio da incerteza.
A Lei-quadro da transferência de competências para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais, Lei nº 50/2018 de 16 de agosto, conforme – e muito bem – afirmou o Exmo. Senhor Presidente da República (em nota específica sobre a matéria) deixa “em aberto outras questões, para que importa chamar a atenção: a sustentabilidade financeira concreta da transferência para as autarquias locais de atribuições até este momento da Administração Central; o inerente risco de essa transferência poder ser lida como mero alijar de responsabilidades do Estado; a preocupação com o não agravamento das desigualdades entre autarquias locais; a exequibilidade do aprovado sem riscos de indefinição, com incidência mediata no rigor das finanças públicas; o não afastamento excessivo e irreversível do Estado de áreas específicas em que seja essencial o seu papel, sobretudo olhando à escala exigida para o sucesso de intervenções públicas”.
Este avisado alerta por parte do Chefe do Estado, deve ser levado muito a sério pelas Câmaras Municipais, Assembleias Municipais, Juntas de Freguesia e Assembleias de Freguesia.
Na verdade, esta Lei-quadro, não só pelo o que diz, mas muito especialmente pelo que não diz, é uma espécie de cheque em branco que é exigido às Autarquias Locais.
Não se trata de ser “contra” o princípio da descentralização, corporizado em delegação de competências, mas sim de não dar cobertura a um processo que o próprio enquadramento legal actual indicia que os resultados serão atabalhoados. Esse, mais do que provável, atabalhoamento, pode resultar em enormes prejuízos financeiros, em sobrecarga de custos para as Autarquias, instabilidade laboral, no que poderá acarretar pela mudança dos funcionários da Administração Pública Central para a Administração Local e – muito mais grave – perda de qualidade na prestação dos serviços.
O assumir de competências em relação a qualquer serviço público não implica apenas um cálculo de custos fixos de funcionamento no presente, mas também custos relacionados com os investimentos necessários no curto, no médio e no longo prazo, e sobre isso, para além de palavras – e essas “leva-as o vento” – ainda não há qualquer compromisso ou diploma legal.
Mesmo em relação à proposta de transferência directa, por imposição legal, de competências das Câmaras Municipais para as Juntas de Freguesia, a forma como a Lei-quadro a concebe, está viciada, ab initio, ao nem sequer diferenciar freguesias urbanas de freguesias rurais, tratando-as todas por igual e ao criar condições de ingovernabilidade territorial, em termos de município, ao não permitir a inclusão de mecanismos que garanta uma uniformidade gestionária para cada freguesia dentro dos limites do mesmo município, o que em relação a certas matérias (competências), como por exemplo a gestão do espaço público poderá significar o caos.
As transferências de competências entre os órgãos do município e os órgãos de freguesia, devem ser feitas ao abrigo de uma concordância mútua prévia, regulada por acordos específicos, e completamente claros ao nível das responsabilidades de cada parte, nomeadamente as financeiras. Assim, como esta Lei-quadro prevê, o que se prospetiva é um asfixiar intolerável das capacidades financeiras das freguesias e o criar de inúmeras dificuldades acrescidas no cumprimento, já difícil, das missões dos órgãos de freguesia.
Para terminar, realço, que não é bom princípio legislar e negociar sobre estas matérias, em submissão a interesses de natureza partidária, a lógicas de desresponsabilização em relação a funções de soberania e amarrados a espartilhos ideológicos. Este assunto tem que ser tratado com pragmatismo, com objectividade e com o fito numa só questão: a salvaguarda da qualidade na prestação de serviços públicos essenciais.
Mário Nuno Neves
Doutor em Ciência Política
Vereador na Câmara Municipal da Maia
Não escreve ao abrigo do novo acordo ortográfico.