Há quatro semanas consecutivas que Paris vive sobressaltada por sucessivas manifestações, que inicialmente desenvolvidas de modo mais ou menos pacífico, começaram entretanto a atingir níveis de violência muito preocupantes, colocando em causa a própria segurança de pessoas e bens. Montras partidas, pilhagens e automóveis incendiados, obrigaram mesmo a um reforço da autoridade policial nas ruas, o que implicou inclusive a utilização de blindados, canhões de água e gaz lacrimogéneo. Vários manifestantes foram detidos, alguns até na posse de facas e pedras.
Em plena época natalícia, em que Paris é habitualmente inundada de turistas das mais diversas geografias do mundo, uma boa parte dos estabelecimentos comerciais viu-se na obrigação de encerrar. As famosas explanadas desapareceram, muitos dos museus optaram por fechar as portas e a própria Torre Eiffel decidiu não abrir ao público. Assim aconteceu no passado sábado. O clima de tensão e medo é geral.
Apesar do povo francês ser conhecido por “gostar da rua” para afirmar os seus protestos, há muito que não se viam manifestações com este grau de violência em Paris.
É evidente que esta “realidade ambiental” está a causar danos elevados à economia francesa, mas o dano político, esse, já alcançou uma dimensão tal, cujas consequências finais nesta altura ninguém ousa adivinhar. Se é que esses danos vão ficar apenas confinados ao território francês…
Tudo começou com um “movimento espontâneo”, supostamente criado nas redes sociais, com o único objectivo de protestar contra o aumento de impostos sobre os combustíveis. Sendo que esse movimento, “não organizado”, já tem um nome: ”coletes amarelos”.
Perante a dimensão dos protestos, o Governo francês recuou, inicialmente suspendeu por seis meses a entrada em vigor do pretendido aumento de impostos, e posteriormente desistiu mesmo dessa intenção.
Todavia os protestos na rua continuaram, o ruído e a violência subiram de tom, e representantes do movimento dos “coletes amarelos” conseguiram mesmo ser recebidos pelo Primeiro-ministro francês Édouard Philippe. Só que agora o movimento de protesto quer mais: apresentaram um caderno de encargos com cerca de quarenta medidas, de que se destacam o aumento do salário mínimo e das pensões mínimas, o favorecimento do pequeno comércio nas vilas e centro das cidades, a protecção da indústria francesa e proibição das deslocalizações, o aumento dos impostos para as grandes empresas, a reposição do imposto sobre as grandes fortunas, e exigem ainda a demissão do Presidente da República Emanuel Macron, a quem chamam o “presidente dos ricos”.
O mesmo Macron, que quando foi eleito há cerca de dezoito meses, numa disputa com a líder da extrema-direita Marine Le Pen, era considerado um político diferente, anti-sistema, uma espécie de grande esperança da política francesa e europeia, e que hoje, segundo as mais recentes sondagens, conta com um apoio que não deverá ultrapassar os 20% do eleitorado francês.
Entretanto, aproveitando todo este “ambiente”, Marine Le Pen, da União Nacional e Jean-Luc Mélenchon, da França Insubmissa, convergem, como seria de esperar, num mesmo sentido: apoiam as manifestações dos “coletes amarelos” e reclamam pela necessidade de eleições antecipadas.
E tudo isto acontece num país que é a 6ª economia do mundo, que possui o 11º PIB per capita da União Europeia, e que oferece o 7º salário mínimo nacional mais elevado da Europa, para não falar de um “estado social” que é reconhecidamente dos que mais protege os seus cidadãos!
Daí que se questione, quem são estes “coletes amarelos”, o que verdadeiramente os move?
Não é fácil responder com certeza absoluta a esta pergunta. Com efeito, apesar de rapidamente terem recebido o apoio de Marine Le Pen e de Mélenchon, respectivamente líderes da extrema- direita e da extrema- esquerda francesa, a verdade é que aparentemente não parece haver uma orientação ideológica clara no movimento dos “coletes amarelos”. O que não significa que o mesmo não integre nesta altura grande número de apoiantes da “União Nacional” e da “França Insubmissa”. O aproveitamento do momento e a manipulação deste movimento “não organizado e sem líder” pelos partidos populistas seria sempre um risco e uma tentação irresistível.
A verdade é que há uma França descontente, que se sente esquecida, que não acredita nos seus representantes políticos e que acha que o seu voto vale cada vez menos. Alguém dizia que era a França da periferia, das zonas rurais, em contraponto com a do centro das grandes cidades. Eu acrescentaria a França da classe média, cada vez “menos média”, fustigada por uma carga fiscal insuportável e desesperante. Fenómeno que numa perspectiva global, não será muito diferente do que se passa na maioria dos países europeus, independentemente do grau e dimensão da insatisfação.
Acresce que as desigualdades económicas continuam a aumentar e a concentração da riqueza nas mãos de apenas “uns quantos” também. Como recordava recentemente o investigador Fernando Jorge Cardoso, “há uma diminuição clara da pobreza no mundo, só que a diferença entre estes mais pobres que se tornaram menos pobres e estes mais ricos que se tornaram mais ricos é que aumentou”.
Assim, e face à manifesta crise dos partidos políticos tradicionais, não há dúvida que os movimentos populistas têm aqui uma clara oportunidade para crescer. Não foi por acaso que na primeira volta das últimas eleições presidenciais francesas os candidatos Marine Le Pen e Jean- Luc Mélenchon alcançaram no conjunto 40,88% dos votos (respectivamente 21,30% e 19,58%).
E em boa verdade, os partidos populistas, designadamente da extrema- direita, têm crescido um pouco por toda a Europa nos últimos tempos, com resultados eleitorais muito expressivos em países como a Holanda, Áustria, Dinamarca, Suécia, Itália, Hungria e mesmo Alemanha. Inclusive aqui na vizinha Espanha, onde recentemente o partido “Vox” conseguiu de forma surpreendente eleger 12 deputados para o parlamento da Andaluzia.
Daí que já não seja de ignorar de todo, notícias como aquela que há dias atrás sugeria que o antigo estratega de Donald Trump, Steve Bannon, não escondia a “vontade em fazer eleger nas eleições europeias de 2019, deputados de partidos fascistas, extremistas e populistas de direita para minar a União Europeia por dentro”…
O populismo destrói pacientemente os pilares da democracia e surpreende rapidamente os menos atentos e esclarecidos.
Hoje ninguém duvida que apenas temos “Brexit” porque num dado momento o eleitorado do Reino Unido foi levado por uma onda populista circunstancial. E de nada adianta que Nigel Farage, então líder do partido nacionalista britânico UKIP, venha agora admitir que durante a campanha para o referendo utilizou mensagens que não eram integralmente verdadeiras.
Por último, é importante não esquecer que no passado sábado já tivemos uma manifestação de coletes “amarelos” em Bruxelas, com a polícia belga a ser obrigada a fazer mais de 100 detenções, por alegados actos violentos…
Estejamos atentos, e saibamos cuidar dos nossos valores, da nossa democracia.
Paulo Ramalho
Vereador da Economia e das Relações Internacionais da Câmara Municipal da Maia