Depois do wikileaks o football leaks. Depois de Julian Assange, Rui Pinto. O que começou por ser um site responsável desde 2015 pela divulgação de milhares de documentos confidenciais relacionados com o mundo do futebol e cujo conteúdo já deu origem a vários processos movidos contra jogadores e treinadores, ganhou um rosto.
Recentemente extraditado para o nosso país após um mandado de captura europeu em seu nome (nos últimos tempos o seu “centro de operações” passou da sua casa em Vila Nova de Gaia para Budapeste), o português Rui Pinto encontra-se indiciado por dois crimes de acesso ilegítimo, dois de violação de segredo e ofensa a pessoa colectiva, todos relacionados com o acesso e divulgação de informação confidencial envolvendo o Sporting e o fundo de investimento que financia passes de jogadores Doyen Sports (o caso Rojo por ex.) e contratos deste com vários clubes de futebol. Bem como pela tentativa de extorsão ao aludido fundo em troca do seu silêncio, razão pela qual se encontra actualmente preso preventivamente.
É ainda o principal suspeito de ter pirateado e divulgado os e-mails do Benfica que provocaram as actuais investigações envolvendo o clube da Luz.
Os advogados de Rui Pinto defendem que este não deve ser visto como um criminoso mas como um denunciante, tendo em conta o interesse público do conteúdo dos documentos pirateados. E que as directivas europeias vão no sentido de reforço da protecção dada aos denominados “whistleblowers”, que com as suas denúncias expõem actividades criminosas que de outra forma seriam de difícil investigação. Afirma ainda que antes de ser detido na Hungria, conjuntamente com toda a documentação pirateada (a grande maioria ainda por divulgar), Rui Pinto estava a colaborar com o Ministério Público Francês em várias investigações relacionadas com crimes económicos no futebol.
E a primeira questão coloca-se: devemos mesmo penalizar quem forneceu provas de corrupção em larga escala? Principalmente no mundo do futebol onde infelizmente mais impera – nomeadamente nas transferências de jogadores e no monopólio dos (super) agentes e suas (super) comissões?
Note-se que em Portugal não existe (ainda?) a delação premiada nos termos configurados pela lei brasileira, todavia existe a possibilidade de atenuação especial da pena (que na realidade é uma atenuação da moldura penal abstracta aplicável ao caso que pode não se reproduzir numa atenuação da pena concreta efectivamente arbitrada pelo Tribunal) caso existam circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
A lei penal cita alguns exemplos – não taxativos- nos quais se inclui “ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso (…)” que, no caso de Rui Pinto vir a ser formalmente acusado, poderia ser aqui aplicável, não fosse a alegada existência de uma tentativa de extorsão,que, a verificar-se, retira a justificativa nobre aos seus actos.
Existe ainda com relação a alguns tipos legais de crime (nomeadamente em casos de branqueamento de capitais, terrorismo e tráfico de droga) o designado “direito premial” que prevê uma atenuação ou mesmo uma dispensa de pena (esta última quase letra morta na verdade) a arguidos que colaborem na investigação e ajudem a descobrir a verdade. E desde que confessos e arrependidos.
Ora estes institutos são pensados para facilitar o desmantelamento de redes e a aquisição de provas, principalmente no âmbito da criminalidade organizada e que de outro modo seriam de difícil descoberta. Não estimular a sua aplicação pode levar a que as pessoas se retraiam a auxiliar as autoridades, pelo receio das repercussões legais ou para sua integridade física e segurança que daí poderão advir, comprometendo o êxito de futuras operações policiais. Foi o próprio Rui Pinto a declarar que no nosso país teria a cabeça “a prémio” e que o tentariam silenciar com receio do que poderá constar nas informações pirateadas e, mais importante, quem poderá constar.
Porém não é só essa a razão pela qual Rui Pinto não queria ser extraditado para o seu país natal. O hacker acredita que em Portugal não terá um julgamento justo porque o sistema judicial não é inteiramente independente e há muitos interesses escondidos.
E não é o único.
Foi avançado há dias pela revista alemã Der Spiegel, à qual o hacker forneceu informação a que teve acesso – e que por cá se tornou mais conhecida por divulgar o acordo de confidencialidade entre Cristiano Ronaldo e Kathryn Mayorga, a americana que o acusa de violação – que as autoridades francesas pediram autorização para copiar os documentos apreendidos antes da extradição, temendo que em Portugal estes fossem destruídos. O que não só poe em causa a independência e competência como também a credibilidade do sistema judicial português.
E a segunda questão coloca-se: esta desconfiança de Portugal será legítima? Existirá uma promiscuidade entre a justiça portuguesa e o futebol?
A esta desconfiança não será certamente alheia o facto de já terem existido vários portugueses visados nas denúncias da football leaks. Na verdade, só em Espanha, Cristiano Ronaldo, José Mourinho, Fábio Coentrão e Ricardo Carvalho foram condenados a pagar milhões de euros à autoridade tributária por fraude fiscal no âmbito de investigação iniciada com base em documentos divulgados.
E o facto de Rui Pinto alegar ter na sua posse e-mails trocados entre elementos da P.J. e elementos da Doyen Sports. Já para não falar no caso e-toupeira…
O que é certo é que se Rui Pinto estiver disponível para colaborar com as autoridades portuguesas das quais tanto desconfia terá a sua vida muito mais facilitada. E quem sabe uma proposta de emprego!
Angelina Lima
Advogada
A autora escreve segundo a antiga ortografia