– Por José Augusto Maia Marques
O Foral é, para qualquer local a que seja outorgado, um documento estruturante. Modela, como veremos, não só o território como as gentes que o habitam. É também, em muitos casos, o documento fundador do Concelho, estrutura administrativa e de poder decisiva em todo o país, mas com maior significado no Norte de Portugal.
Parece assim mais do que justificado que evoquemos os 500 anos da outorga à Terra e Concelho da Maia do seu foral, acto que, presidido por D. Manuel, “o Venturoso”, teve lugar a 15 de dezembro de 1519
Os Forais e a sua importância
Uma carta de foral é um documento concedido por um rei ou por um senhorio laico ou eclesiástico a uma povoação; nele se estabelecem as normas de relacionamento dos seus habitantes, quer entre si quer com o senhor que lhes outorgou o documento e se lhe conferia uma certa autonomia.
É concedido como uma carta de privilégio, dando aos moradores da terra que a recebe um estatuto regulamentador da sua administração, deveres e direitos.
Estes documentos aparecem no contexto da Reconquista Cristã, isto é, à medida em que novas terras iam sendo reavidas por parte dos cristãos, e era preciso povoá-las, ou consoante se quisesse reforçar a defesa de um local ou de uma área sem mobilizar o exército. Quem, melhor que os seus habitantes, defenderia uma aldeia ou uma vila.
Os primeiros forais foram portanto atribuídos com o intuito de povoar, defender e cultivar as terras que através deles eram doadas.
Os forais essencialmente atribuídos entre o século XII e o século XVI, foram a base do estabelecimento do município e, desse modo, tal como acontece este ano com a Maia, foram o evento mais importante da história da povoação em questão.
Através dos forais, consignavam-se liberdades e garantias às pessoas e aos seus bens, estipulavam-se impostos e tributos, multas e composições, o serviço militar, imunidade coletivas, aproveitamentos dos terrenos comuns, etc.
Em relação com o Foral, isto é, com o estatuto que o documento lhe concedia, o concelho erigia normalmente um Pelourinho ou Picota.
Era erguido na praça principal da vila ou cidade aquando da concessão do foral e simbolizava o poder e autoridade municipais uma vez que era junto ao pelourinho que se executavam sentenças judiciais de crimes públicos que consistissem em castigos físicos.
Os pelourinhos, normalmente, apresentavam uma base sobre a qual assenta uma coluna ou fuste, terminando por um capitel. Em Portugal, os pelourinhos ou picotas (esta a designação mais antiga e popular) dos municípios localizavam-se sempre em frente ao edifício da câmara, desde o século XII.
Muitos concelhos tinham na praça principal um modo de expor os delinquentes ao povo para vergonha pública, fossem grades de ferro fossem tábuas de madeira com perfurações para os braços e pescoço.
Noutros locais, os presos eram amarrados às argolas e açoutados ou mutilados, consoante a gravidade do delito e os costumes da época.
Na Maia nunca houve pelourinho, como nunca houve uma instituição concelhia a funcionar normalmente, por razões que adiante aduziremos.
Assim, graças ao Foral, e em nome do rei, havia uma organização ou um donatário que administrava o território, recolhendo impostos e administrando justiça.
Quando o rei outorgava uma carta de foral, reconhecia os esforços da localidade na construção do país, nomeadamente na participação ativa nos trabalhos de conquista do território. Por outro lado, buscava-se um equilíbrio territorial, impedindo que os senhores pudessem tornar-se mais poderosos que o próprio rei.
Entretanto, muitas coisas mudaram. Os primeiros documentos eram redigidos em latim, que quase ninguém sabia ler, prestando-se a interpretações abusivas, os sistemas de pesos e medidas foram muito alterados, e a própria circunstância histórica e territorial modificou-se muito a partir de D. Dinis. Isto fez com que as queixas por parte das populações fossem cada vez mais e mais graves
Era, por todas estas razões, necessário rever os forais. Já D. João II se apercebeu da questão e lhe deu atenção, mas foi com D. Manuel I que a reforma avançou, e é assim que entre 1499 e 1520, foram outorgados quase 600 forais novos.
No final da “Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel”, Damião de Góis procura dar-nos, numa visão geral, o balanço da atividade e interesse do Rei, no que diz respeito a Instituições, Legislação, Moeda, Cidades e Vilas que criou. E informa-nos: “Mandou, por homens doutos do seu Conselho, rever os cinco livros das Ordenações, nos quais mandou diminuir e acrescentar aquilo que lhe pareceu necessário para o bom governo do Reino”.
Estes documentos, e as suas determinações, acabaram por ser extintos no conjunto de reformas administrativas levadas a cabo por Mouzinho da Silveira em 1832.
Foral da Maia
Não conhecemos o livro original do Foral da Maia. Como a Maia pertencia ao Termo do Porto, isto é, tal como os municípios à volta daquela cidade, não tinha autonomia, o exemplar original terá sido entregue à Câmara do Porto. Só que, tal como o de Penafiel, por exemplo, extraviou-se, e por isso aquela Câmara solicitou à Torre do Tombo uma cópia desse foral, bem como do de Penafiel, também ele desaparecido.
A Torre do Tombo envia então uma Certidão de 15 de maio de 1614 dos forais de Penafiel e da Maia dados respetivamente em 1 de julho de 1519 e em 15 de dezembro de 1519, por D. Manuel I. Os poucos trabalhos realizados até hoje sobre o nosso foral são baseados nesta cópia e não no texto inicial.
O Foral servia como um verdadeiro código de conduta, procurando minimizar os conflitos sociais. Assim, continha uma série de determinações para clarificar situações que pudessem ser duvidosas:
- Foros – «…poremos aqui os direitos e coisas que se no dito lugar somente houverem de pagar e os que aqui não forem declarados não se pagarão mais em nenhum tempo… »
- Recebimento – desde Santa Maria de setembro (8 de setembro, Natividade de Nossa Senhora) até ao dia de Natal.
- Lutuosas – direito recebido pelo senhorio (donatário) por morte dos seus rendeiros (enfiteutas).
- Argaço – Sargaço; a apanha de sargaço era importantíssima para adubar as terras.
- Pena de Sangue – Condenação, multa ou coima que se impunha aqueles difamavam, espancavam alguma pessoa ainda que sangue não corresse da ferida ou contorção.
- Pena Darma – (de arma) Castigo pela utilização violenta de qualquer arma.
- Gado do Vento – gado que se encontrava sem dono, abandonado nos campos, ou que vagueava pelo concelho.
- Maninhos – Terras e bens sem dono ou abandonados.
Nota Final
O Foral da Maia, não sendo particularmente rico no que respeita a dados históricos, é, no entanto, um documento interessante.
Por exemplo, se verificarmos de que modo é que se pagavam as rendas, ficamos a perceber a dinâmica económica da Maia no final da Idade Média:
O pagamento das rendas podia fazer-se de modo muito diverso:
Em dinheiro: Real branco – real preto – ceitil (moedas mais em uso na época); em cereais: trigo – milho – centeio – cevada; em animais: Galinha – frangão – capão – coelho – porco – ovos; em outros produtos da terra: mostarda – manteiga – vinho – palha – pão meado – pão terçado – linho.
Daqui se infere que a Terra da Maia era eminentemente agrícola, nela se destacando o cultivo dos cereais, a criação de gado, o cultivo da vinha e a importância do linho.
Por outro lado, o Foral dá relevo à determinação do monarca de isentar de qualquer direito a apanha e recolha de sargaço, até aí objeto de taxas discricionárias impostas por quem não tinha direito a elas, para prejuízo dos lavradores maiatos. Sendo o sargaço um dos maiores recursos para se adubarem as terras, veja-se o alcance que essa medida teve para quem trabalhava a terra.
Finalmente, lembrar que quer o nosso linho, para fazer velas, quer os nossos tanoeiros, para fazer as pipas e barris, fundamentais para o transporte de líquidos quer de sólidos, colocam também a Maia num patamar de grande relevo no que aos descobrimentos portugueses diz respeito.
Embora ele tenha legitimado um concelho que, de facto, só funciona a partir de finais do século XVIII, inícios do XIX, creio, por tudo o que se escreve, e muito mais, que bem se justifica que evoquemos os 500 anos deste significativo documento.