É verdade que o Reino Unido não foi fundador da “Comunidade Europeia do Carvão e do Aço”, criada em 1951. Como não aceitou, seis anos depois, o convite para integrar a então “Comunidade Económica Europeia”, conjuntamente com a França, a Itália, a Bélgica, a Holanda, o Luxemburgo e a República Federal da Alemanha. Tendo apenas logrado a sua entrada em 1973, e depois de ter visto vetada a sua adesão por duas vezes pelo então presidente francês Charles de Gaulle.
É também certo que o Reino Unido apesar de ter subscrito em 1992 o Tratado de Maastricht, que instituiu a actual União Europeia, e posteriormente o Tratado de Lisboa em 2007, era frequentemente visto como um membro algo resistente ou menos entusiasta em matérias que implicassem maior integração económica e política, não tendo por exemplo, aderido à moeda única.
Mas não é menos verdade, que foi com alguma desilusão e mesmo preocupação, que assisti à concretização da saída do Reino Unido deste projecto de Europa Unida no passado dia 31 de Janeiro, que continuo a acreditar ser o projecto transnacional mais bem-sucedido da história. Um projecto ainda em construção, mas detentor de um património inigualável, que poucos territórios no mundo se podem orgulhar, assente num conjunto de valores e princípios, de tolerância e solidariedade, de respeito pelo primado da lei, que têm como pilar principal a dignidade da pessoa humana, que ajudou a transformar a Europa depois da segunda guerra mundial, que trouxe a paz e a consolidação do Estado de Direito Social e Democrático. E que trouxe mais desenvolvimento e bem-estar disponível e acessível a um maior número de cidadãos.
Aliás, devo confessar mesmo que não esperava que o “Brexit” vencesse aquele referendo de 23 de Junho de 2016. E estou convencido que nem o próprio Primeiro-ministro britânico da altura, David Cameron. Muito menos depois de quatro meses antes ter conseguido negociar com a União Europeia uma espécie de “estatuto especial” para o Reino Unido. Acordo esse que previa, recorde-se, entre outros, o direito de estabelecer restrições na circulação de migrantes para o Reino Unido e nos benefícios sociais a conceder, poderes reforçados para travar a entrada de criminosos no seu território e para a sua deportação, o direito do Reino Unido manter a libra e proteger a sua moeda, assegurando o direito efectivo de ficar à margem do aprofundamento da união económica e monetária, e mais importante, o afastamento dos britânicos de qualquer obrigação de participar no pagamento de resgates financeiros a países da Zona Euro.
E confesso também, que mesmo depois do referendo, em que o “Brexit” venceu por uma margem muito curta, ainda mantive a esperança de um retrocesso, e da permanência do Reino Unido no seio da Comunidade Europeia. E que foi naturalmente crescendo à medida que o Parlamento britânico foi recusando os acordos negociados pela então Primeira-ministra Theresa May e a Comissão Europeia, levando mesmo à sua demissão. Com efeito, tornava-se cada vez mais óbvio, achava eu, que os britânicos recusavam uma saída sem acordo, que dificilmente seria alcançado e sufragado no seu Parlamento, e que tinham cada vez mais consciência dos graves riscos do abandono da União Europeia, e até em certa medida, da precipitação em que tinham incorrido.
A Escócia e a própria Irlanda do Norte davam sinais claros de pretenderem a manutenção na União Europeia. Grandes empresas ameaçavam abandonar o território do Reino Unido caso o “Brexit” fosse adiante. Sucediam-se os estudos que apontavam para uma forte penalização da economia britânica, caso a saída se viesse a concretizar. A Bloomberg Economics chegou mesmo a adiantar que a economia britânica terá crescido menos 3% do que teria crescido caso tivesse saído vencedora a permanência na União Europeia no referendo de 2016, sugerindo que a opção pelo “Brexit” terá custado cerca de 150 mil milhões de euros à economia do Reino Unido entre 2016 e 2019.
Cheguei inclusive a ter a expectativa de um segundo referendo…, mas com a chegada de Boris Johnson à liderança do Governo britânico e do seu pragmatismo, tudo se esfumou. Percebendo o impasse parlamentar e o cansaço dos britânicos de três anos de indecisões, Boris arriscou a antecipação das eleições, e não só as ganhou como aumentou de forma expressiva a maioria que o Partido Conservador já possuía. O slogan “Get Brexit done” (concluir o Brexit) derrotou de forma humilhante o Partido Trabalhista de Jeremy Corbyn, que com um discurso inábil, complexo e demasiado “à esquerda”, e que defendia mais uma renegociação com Bruxelas, não conseguiu sequer convencer o seu eleitorado tradicional que tinha votado pela permanência do Reino Unido na União Europeia no referendo de 2016.
Mas a verdade é que por muito que nos custe, desde o passado dia 31 de Janeiro que o Reino Unido não faz parte do nosso projecto de Europa Unida. Agora são apenas 27 e não 28 os Estados-membros da União Europeia.
Isto apesar do Reino Unido até 31 de Dezembro próximo, ou seja, durante o denominado “período de transição”, continuar, no essencial, sujeito às regras e leis europeias. Os cidadãos europeus vão continuar a poder viajar para o Reino Unido sem visto e com o simples cartão de cidadão. E os britânicos vão continuar a fazer parte do mercado único, pelo que no que tange às relações comerciais, também não existirão novas tarifas ou controlos. Quase tudo como até aqui.
Todavia, terminado o período de transição, tudo poderá ser muito diferente, ou não… Pois tudo dependerá do caminho e das sortes das negociações que se vão desenvolver entre as autoridades britânicas e os responsáveis da União Europeia durante os próximos dez meses.
E se é verdade que estou certo, de que ninguém deixará de prestar a devida atenção à realidade actual, designadamente ao facto de cerca de 45% das exportações britânicas terem como destino a União Europeia e 50% das suas importações serem provenientes dos restantes 27 Estados-membros, é bom que se perceba que o Reino Unido fica desde já com o direito de começar a negociar acordos de comércio com quaisquer outros países, e nos termos que bem entender. Aliás, ainda recentemente, em Davos, durante o Fórum Económico Mundial, Donald Trump anteviu a realização de um acordo comercial “tremendo” entre os Estados Unidos e o Reino Unido, ainda este ano.
Por muitas voltas que demos, a saída do Reino Unido é claramente uma “pancada” no projecto de construção da União Europeia, não só pelas consequências práticas que de antemão já sabemos, como por aquelas que nesta altura ainda desconhecemos, mas sobretudo pelo simbolismo que encerra e representa para a Europa e para o Mundo.
Desde logo, não podemos esquecer que o Reino Unido é a sexta economia do Mundo e a segunda da Europa, pelo que era um dos maiores contribuintes da União Europeia, ao lado da Alemanha e da França. Por outro lado, apesar de não existir verdadeiramente uma política de segurança e defesa comum dentro da União Europeia, todos conhecemos a importância das forças britânicas neste domínio, possivelmente as mais capacitadas e bem equipadas da Europa Ocidental. Acresce ainda, que o Reino Unido é a par da França, da Rússia, dos Estados Unidos da América e da China, um dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU com direito a veto.
O projecto de construção de uma Europa Unida continuará naturalmente o seu caminho, mas a União Europeia, sejamos claros, sem o Reino Unido, não será exactamente a mesma…
Paulo Ramalho