Carolina Alves é enfermeira na Unidade de Cuidados Intensivos Covid e usou as redes sociais para descrever como viveu o seu primeiro óbito de um paciente.
“04 de Novembro de 2020, o ponteiro do relógio marca as 7:47h ao fundo do corredor, pico o ponto, subo as escadas, mas que grande lanço até chegar ao 3º piso, viro à esquerda, entro no meu serviço, fardo-me, pego nas minhas socas e penso, bem, mais um turno, por entre os loucos que tenho vivido, mas este vai ser longo, 12h pela frente me esperam e o quanto estas socas ainda vão ter que chinelar.
Dirijo-me à colega que vou render, passamos o turno, recebo a doente que será da minha responsabilidade nas próximas 12h, alguém já minha conhecida, alguém que já vinha a acompanhar há alguns dias ao longo dos turnos realizados ali, na UCI Covid.
Preparamos a terapêutica, organizamos as dinâmicas do serviço em equipa, e de seguida… Máscara FP2, óculos, viseira, fato completo, bata de proteção, 2 pares de luvas… tudo aquilo a que temos direito. Lá vamos nós, lá vou eu. Ultrapasso a linha vermelha. Dirijo-me à minha D. Esperança (nome fictício), administro a terapêutica, faço as dinâmicas que um doente de UCI exige, presto-lhe os cuidados de higiene, cuido do seu cabelo, espelho nos meus cuidados todo o conforto e dignidade que ela merece… Mas é notório que o estado geral dela piorou ao longo dos dias, percebemos por evidência científica, através dos monitores, que a qualquer momento a sua alma se esvanece… Contactamos a família para que se despeça, sabemos que será uma questão de horas… foi um caso excepcional, em situação de fim de vida, em que foi permitido.
Recebo os filhos, apresento-me como a enfermeira de referência da D. Esperança, explico-lhes o que se passa, equipo-os de uma forma rigorosa, protetores de calçado, bata de proteção, luvas, óculos… preparo-os para o que irão ver, os mil e quinhentos fios, as máquinas, o ventilador… avançamos juntos, ultrapassamos a linha, dirigimo-nos a ela. As lágrimas deles escorrem pelo rosto, e confesso que as minhas por mais que disfarçadas por detrás de um fato, também. Encorajo-os, digo-lhes para que agarrem na sua mão e lhe digam o quanto gostam dela. Silêncio. Afasto-me um pouco e respeito a privacidade deles. Transmito-lhes confiança, “ela está tranquila, relaxada, não tem dor, está confortável na medida do possível”.
Saímos da zona vermelha, retiramos todas as proteções. Acompanho-os à porta. Tranquilizo-os, garanto-lhes que a sua mãe está bem entregue, não me refiro a mim, mas sim a toda a equipa que me acompanha diariamente nesta luta, que ficará em paz, e nunca a deixarei sozinha.
Fecho a porta do serviço, o coração fica bem mais apertadinho. Mas, mais a fazeres existem, entre os alarmes a apitar, e máquinas a tocar, a confusão… Passado momentos, volto a dirigir-me junto dela, e todos percebemos que o momento teria chegado. Agarrei a sua mão, e fiquei junto dela. Cumpri o que prometi. A D. Esperança faleceu. Foi o meu primeiro óbito.
Não foi só mais um turno, contrariamente ao que se possa pensar, não foi só mais um dia.. foi o dia em que vivenciei a linha de alguém a permanecer reta, como nos filmes, mas a diferença é que foi real, eu estava ali, junto dela. Não estava sozinha, uma das companheiras de guerra permaneceu comigo, encorajou-me, tranquilizou-me, fez-me sentir que fizemos tudo o que poderíamos fazer pela nossa doente, que foi e que fomos os enfermeiros que ela precisou, sempre, 24h, sem vacilar.
Das 59 mortes do dia de hoje, uma foi a D. Esperança.
É assustador pensarmos quantas mais D. Esperanças irão existir… quanto tempo isto irá durar… até quando iremos aguentar?”.
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