O NOTÍCIAS MAIA foi conhecer Rafi die Erste, a artista que pinta poemas visuais, onde a vida se mistura com os desenhos, e que quer empoderar meninas e mulheres pelo mundo fora.
Rafi die Erste é o nome da artista por detrás do novo mural na cidade Porto, que pode ser visto no cruzamento da Rua de Vilar e a Rua de D. Pedro V. Este é o primeiro trabalho da artista na cidade que a viu nascer, ainda que, apesar de nascida no Porto, ter sido na Maia que viveu toda a sua vida.
E foi na Maia, na sua casa, que o NOTÍCIAS MAIA falou com Rafi die Erste. Nesta entrevista, que se fez na segunda pessoa do singular, conhecemos a artista, a mulher e uma parte daquilo que a move e que a trouxe até aqui. Diz-nos que a sua vida se mistura com os desenhos, que o seu futuro passará por pintar meninas de todo o mundo e que, nestes 44 anos de vida, finalmente tudo lhe faz sentido.
Notícias Maia (NM): Apesar de batizada com o nome Teresa Rafael, não é com este nome que assinas os teus trabalhos. De onde surgiu o Rafi die Erste?
Rafi die Erste (Rafi): O meu último nome é Rafael e Rafi vem dessa parte. Depois há uma coisa no graffiti associada a quando escolhes o nome que é o juntares a palavra “One” [um]. Mas como eu gosto de fazer as coisas à minha maneira, pensei em “the first” [primeiro/a] e o die Erste significa “a primeira” em alemão. Isto porque sou a primeira do meu nome a última da minha linhagem, porque não tenho filhos, e fez-me sentido.
NM: És licenciada em Arquitetura. Como é que chegas ao graffiti?
Rafi: O graffiti surgiu espontaneamente quando em tinha 24 anos. Numa saída à noite fiquei amiga de uns rapazes de Lisboa que pertenciam à vanguarda do graffiti e do hip-hop em Portugal. Como ficámos amigos, comecei a passar verões em Lisboa, em Carcavelos.
Agora que olho para trás, entendo que tive o privilégio de viver uma época dourada do movimento da subcultura do hip-hop e do graffiti em Portugal. Nessa altura, no final dos anos 90 e início dos anos 2000, comecei a ouvir as letras em Português que os meus amigos faziam e achei tudo aquilo poesia. Até fico arrepiada porque eles inspiraram-me imenso. Depois comecei a acompanhar o graffiti. Eu sempre desenhei, desde miúda, e achei tudo aquilo fascinante. Comecei a pedir-lhes para acabar os desenhos e eles acabaram por me ensinar técnicas básicas porque senão eu estava a destrui-lhes latas. Depois daí até por um desenho meu na parede foi assim uma coisa natural.
NM: E onde é que está esse primeiro desenho?
Rafi: Está aqui perto de minha casa em Nogueira da Maia e já te vou mostrar a seguir à nossa conversa.
NM: Depois de tantos anos a pintar e a espalhar trabalhos pelo mundo, qual é a pintura que mais te orgulha? Quer seja pela dificuldade, pelo desafio…
Rafi: O que mais orgulho me dá, no sentido de conquista, é um que fiz há dois anos nos Alpes, em França. Pintei um prédio de seis andares e o desafio incluiu conduzir uma grua. Nesse sentido, quando acabei, lembro-me de estar na rua a olhar para o prédio e sentir-se tão feliz! As pessoas gostaram muito do mural. Senti um grande orgulho porque enfrentei todos os dias medos e receios. Depois tornas-te bastante espiritual porque percebes que para tudo correr bem depende de ti e de alguma coisa que te ampare. Mas não posso deixar de referir o que pintei em Belém, na Palestina, num muro feito por Israel. Simbolicamente é o que eu tenho no meu coração.
NM: Além do graffiti e da pintura propriamente dita, há uma outra parte na tua vida que te ocupa algum tempo, que é uma loja. Como é que nasce este projeto?
Rafi: Há bocado perguntaste-me quando surgiu o graffiti na arquitetura e a loja vem nesse sentido. Em 2007 dediquei dois anos a estudar a alienação na cidade contemporânea através da subcultura do graffiti e, entrei tanto dentro do graffiti, que me apaixonei. E a partir daí penso que comecei a levar isto mais a sério e a querer dedicar-me mais ao graffiti. Eu identifiquei-me com os valores desta subcultura.
A Dedicated Store Porto é uma loja que segue um conceito que surgiu em Colónia, na Alemanha, pelas mãos de um grande amigo meu e que pertence à Crew que te falei, de Lisboa. Eu acabei por ser adotada por essa Crew, os Microlândia Connection, e com um deles, abri a loja no Porto, em 2011.
NM: Que foi a primeira loja de graffiti na cidade Porto.
Rafi: Exatamente, e é um projeto que mantenho até hoje. Tem nove anos. Manter uma loja de latas tantos anos é difícil mas eu sempre fui equilibrando a loja com o meu trabalho de artista, que é o meu foco principal.
NM: E voltando a esse trabalho de artista, acabas de pintar o teu primeiro mural na cidade onde nasceste, no Porto. Como é que surgiu o convite?
Rafi: O convite surgiu através do Hazul, que é o artista faz a curadoria do projeto de Arte Urbana, promovido pela Ágora, que é a parte da cultura da Câmara do Porto. Quando me foi feito o convite eu fiquei em êxtase porque já tinha pintado em tantos sítios e não tinha nenhum mural na minha cidade, na cidade que me pariu.
NM: Quando aceitaste o convite já sabias o que querias lá pintar?
Rafi: O desenho caiu-me logo na cabeça depois do convite mas eu não dei muita importância porque ainda ia pesquisar e pensar bem no que queria fazer. Mas a verdade é que eu voltava sempre aquele primeiro desenho e acabei por seguir essa ideia. Os meus desenhos são poemas visuais construídos a partir de narrativas minhas, coisas da minha vida, que gosto, que me tocam o coração. Eu disse-te que desenho desde pequenina e, nessa altura, o desenho era um refúgio, a minha forma e organizar o caos à minha volta. Com este mural na cidade do Porto, eu entendi que a minha vida hoje mistura-se com os meus desenhos, já não é um refúgio. O imaginário espelha o real e o real torna-se imaginário.
NM: Como é que foi o processo criativo? Aquele desenho é um autorretrato?
Rafi: Aquele mural, sendo que é o primeiro mural na cidade onde nasci e sendo eu filha do Porto, tinha de ser eu. Chamei-lhe “The Butterfly’s Burden”, que é uma metáfora que significa “o fardo da borboleta” e no qual eu me identifico. É também o título do livro de um escritor e poeta palestiniano, o Mahmoud Darwish, porque, de alguma forma, tinha de ali estar a Palestina.
NM: Quanto tempo demorou a fazê-lo?
Rafi: Comecei a pintá-lo nos últimos dias de dezembro e acabei no início de janeiro. O convite já tinha sido feito com alguma antecedência mas todo este processo e a situação pandémica que vivemos acabou por tornar as coisas mais demoradas.
NM: Hoje em dia vemos cada vez mais arte urbana nas ruas, muitas vezes em forma de homenagem. Esta arte enriquece uma cidade?
Rafi: Sem dúvida, esta é a resposta. Agora, isso que falas da homenagem, que é muito interessante, é mesmo o graffiti. O graffiti surgiu nas comunidades excluídas de Nova Iorque, no final dos anos 60 e 70. Surgiu como uma forma de identidade numa sociedade que normaliza tudo. Era quase uma maneira de dizer “eu existo” e por isso é que pintas nos comboios, porque eles andam na cidade e assim todos veem o teu nome.
E, além desta afirmação da identidade, era também uma forma de homenagem e de crítica social. Homenagens a pessoas que tinham morrido vítimas de violência e injustiça social. Era a forma dos jovens manifestarem as suas revoltas e os seus sonhos e eu penso que é uma forma muito positiva, porque é através da arte.
NM: Hoje em dia o graffiti continua a estar muitas vezes ligado à vandalização. Pouco e pouco, com as cidades a apoiarem e a darem espaço, acha que nos estamos a descolar desse estigma?
Rafi: A natureza intrínseca do graffiti é ser ilegal. Estamos a falar de duas coisas diferentes, o graffiti e a Street Art. A Street Art também acontece de uma forma ilegal, embora seja incluída pelas cidades. O que quer dizer que há trabalho para artistas e que podes viver disto.
Quer dizer também que as cidades se tornam muito mais ricas culturalmente, no sentido de que esta é uma arte muito democrática, está na rua para toda a gente ver. A Street Art é um filho do graffiti no sentido de evolução.
NM: É importante que as autarquias deem espaço a este tipo de expressão artística?
Rafi: Sim, acho importante que estes convites existam porque as pessoas podem trabalhar, e a cidade, ao mesmo tempo, enriquece culturalmente. Hoje em dia há roteiros de Street Art e há pessoas a vir de outros países para ver esta arte. O que é que torna as cidades atraentes? A cultura que elas têm para oferecer, e a Street Art já está incluída nessa diversidade de oferta a nível cultural.
NM: A Maia também te deu esta oportunidade de pintar?
Rafi: As primeiras grande paredes que pintei foram na Maia, a convite da Câmara mas não só. Foi um privilégio pintar na cidade que vivo e é sempre uma aprendizagem. Estava num berço conhecido a fazer umas coisas com um tamanho considerável. Eu pintei uma parede com 500 metros quadrados, uma loucura. Foi um privilégio ter acontecido aqui, onde me era um ambiente seguro e familiar.
NM: Para terminar, qual é o sonho? Para onde te queres dirigir?
Rafi: Ao longo da vida podemos mudar o sitio para onde olhar, e obrigada pela tua pergunta. Precisamente neste momento, eu estou a olhar para o que quero fazer e, nesse sentido, as coisas já se estão a organizar. Eu sou artista, acredito no empoderamento e na auto-capacitação feminina, aprendi isso com o graffiti. Eu pinto mulheres empoderadas e quero fazê-lo com meninas pelo mundo todo.
NM: E já há alguma coisa planeada nesse sentido? O sítio onde queres começar, por exemplo.
Rafi: O sítio que tu queres não é o sítio onde acontece. Eu já aprendi, embora às vezes custe, a perceber que o que queremos muitas vezes não é o melhor para nós. A vida surpreende e traz-nos muitas coisas que nós não escolheríamos. Deixo aqui à responsabilidade do universo. Se me perguntares onde eu queria começar? Eu adoro o Médio Oriente.
NM: É esperar que o Universo te responda.
Rafi: Sim, e interagir come ele! Trabalhar. No fim disto tudo quero sentir que me cumpri e, como li um dia, quero sentir que me cumpri na desgraça e na sua superação.
NM: Aos 44 anos, neste momento da tua vida, estás onde queres estar?
Rafi: Sim. Pela primeira vez, olho para trás e faz-me sentido tudo o que aconteceu para eu chegar até como me sinto hoje. Faz todo o sentido e até agora não tinha percebido nada. Mas, neste momento, olho para o percurso e percebo tudo. E sinto-me orgulhosa.