No dia 15 de abril de 2019, o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto (TAF) condenou o Presidente da Câmara Municipal da Maia e um dos vereadores da coligação PSD/CDS-PP à perda de mandato, devido a uma decisão tomada na sequência da reversão fiscal operada pela Autoridade Tributária (AT) contra os ex-administradores da empresa Tecmaia, – Parque de Ciência e Tecnologia da Maia, S.A., E.M.
Tudo começou com uma ação inspetiva da Direção de Finanças do Porto à empresa Tecmaia, que levou à instauração de um processo de cobrança coerciva de valores em dívida de IRC, IVA e juros que ascendem a quase 1,5 milhões de euros.
Na altura, a empresa já se encontrava dissolvida e o seu património liquidado.
A condenação à perda de mandato deveu-se ao facto de aqueles autarcas terem subscrito uma proposta que, na prática, os beneficiava pessoalmente em termos patrimoniais.
A proposta consistia em ser o Município a assumir essa dívida, por a empresa se tratar de uma entidade pública empresarial local e os autarcas terem sido os seus administradores públicos.
A sentença dá razão aos autores da ação judicial, que afirmaram que não havia nenhuma obrigação legal da Câmara assumir esta dívida, e que quando muito esta só poderia assumir 51%, uma vez que corresponde à parte da empresa que foi municipalizada.
Na reunião da Câmara Municipal onde a proposta do executivo para que o Município assumisse de dívida foi submetida a deliberação, o Presidente da Câmara e o vereador não justificaram a sua ausência, limitando-se a não comparecer. Tinham obrigação de a justificar com o impedimento legal a que estavam sujeitos.
O Tribunal deu como provado que os réus intervieram no procedimento administrativo, porque mesmo não a tendo votado (dada a sua ausência), subscreveram a proposta levada à Câmara. Provou-se também que, por serem beneficiados pela sua eventual aprovação, os autarcas estavam legalmente impedidos de participar em qualquer fase do procedimento, havendo um benefício patrimonial direto em consequência daquele ato administrativo.
Provou-se que essa intervenção no ato administrativo interferiu decisivamente no resultado da votação, tanto na Câmara como na Assembleia Municipal, onde tinham maioria. O TAF considerou ter havido negligência “eventualmente grosseira” por parte dos réus.
Esta sentença, foi confirmada no dia 30 de agosto, pelo Tribunal Central Administrativo do Norte (TCA), para o qual os autarcas recorreram da condenação.
O TCA foi claro ao desmontar a tese da defesa de que os ex-administradores teriam agido “no interesse da Câmara ou do Município da Maia”. Na realidade, os ex-administradores foram eleitos pela Assembleia Geral da Tecmaia, e foi no interesse da empresa (dos seus órgãos estatutários) que agiram. Isto releva porque o devedor não é o Município mas a Tecmaia, tendo sido por esse facto que a reversão fiscal correu contra eles (na qualidade de ex-administradores) e não contra o Município.
Mais, há uma contradição naquele argumento. Dizem os condenados que a proposta subscrita “teve por base um parecer jurídico que concluía que o Município tinha o dever legal de assumir a dívida”. Se assim era, então para quê a necessidade de aprovar a assunção da dívida nos órgãos autárquicos?
Estes factos não se tratam de “mentiras” nem se fundam em “informações que circulam pelas redes sociais”, como alguns representantes do PSD afirmaram até agora. Goste-se ou não, a verdade é que a sentença do TAF existe, foi agora confirmada pelo tribunal de recurso e desmonta categoricamente todos os argumentos do executivo PSD/CDS-PP que governa há 40 anos o Município com maioria absoluta. De nada valem as “pós-verdades” ou os “factos alternativos” do poder laranja que distorcem a realidade para enganar os incautos.
É verdade que uma parte da dívida (não toda) acabou por ser devolvida aos cofres da Câmara, por a AT reconhecer, no âmbito de uma reclamação graciosa, que não era devida. Mas mais do que o dinheiro, está em causa a postura adotada. Não importa se um autarca concorda ou não com a lei que vigora. Na prática, os ex-administradores “adiantaram” dinheiro da Câmara para pagar uma dívida que não era da Câmara.
Tudo o que tinham de fazer era contestar essa dívida, aceitarem ser ouvidos previamente pela AT (recusaram-no) e encontrar uma forma legítima de saldar a dívida por meios que não fossem da autarquia. Se no fim, lhes fosse reconhecida razão, então poderiam avançar com a proposta de assunção da dívida. Atribuir, naquele momento, a dívida a todos os munícipes era a pior coisa que podiam fazer.
Tal como o Grupo Municipal do Bloco de Esquerda referiu em dezembro de 2018, no dia da aprovação da proposta de assunção da dívida (com 11 votos contra), a Maia não tinha de assumir o ónus de regularizar a dívida, pelo menos enquanto ele não fosse reconhecido pela AT ou pelos tribunais. Por esse motivo, votou contra a proposta.
No dia 26 de abril, já depois de sair a sentença do TAF, o BE apresentou, na Assembleia de Freguesia da Cidade da Maia, um Voto de Condenação pela decisão da Câmara e correspondente condenação judicial à perda de mandato. Se por um lado, se entendia que a assunção da dívida não decorria de um qualquer dever legal mas de uma má decisão política, no plano legal havia dúvidas acerca da legalidade da apresentação daquela proposta à Câmara e à Assembleia Municipal, onde foram aprovadas com os votos favoráveis do PSD, do CDS e do PAN.
Ao inviabilizarem a aprovação desse Voto de Condenação, os restantes partidos que integram a oposição revelaram uma convergência indesejável com os partidos do poder que põe em causa o escrutínio público que os eleitos dos órgãos deliberativos devem fazer dos órgãos executivos. Quando não há diferenças de posições, é a democracia que fica a perder.
Não deixa de ser curioso o argumento de que se está a “judicializar” a política ao recorrer-se aos tribunais. Como qualquer cidadão, também os partidos têm o direito de intentar ações judiciais que levem ao apuramento da verdade no que diz respeito ao controle da legalidade das decisões políticas. Essa legitimidade decorre da Lei dos Partidos Políticos e da Constituição. Aliás, de que outros meios dispõe os eleitos locais para reagir contra decisões de duvidosa legalidade?
Em suma, do caso Tecmaia julgo haver 3 conclusões principais sobre quem governa o nosso concelho se devem tirar:
1. Ao PSD e CDS-PP falta ética e respeito pelos maiatos. A decisão de onerar todos os munícipes por uma dívida que a AT atribuía somente aos gestores da Tecmaia consistiu numa transferência injusta de responsabilidade daqueles autarcas enquanto pessoas que estavam, por sua livre vontade, incumbidas do dever de gerir a coisa pública. Porque razão temos todos de pagar a fatura dos erros de quem sabia ou devia saber que aqueles impostos tinham de ser liquidados antes da empresa ser dissolvida?
2. Ao PSD e CDS-PP falta rigor e transparência nas decisões. O Presidente da Câmara e os vereadores da coligação PSD/CDS-PP sabiam ou tinham obrigação de saber, que aqueles três autarcas (ex-gestores da Tecmaia), ao preverem vir a ser desonerados (por deliberação dos órgãos autárquicos) de uma dívida da qual foram notificados pela AT a liquidar, não podiam subscrever a proposta que seria apresentada em reunião da Câmara. Quanto a este ponto, é claro que não se trata do incumprimento de uma “mera formalidade”, como estes alegam, mas de algo que consta há muito da Lei da Tutela Administrativa e do CPA. Só alguém muito mal preparado (e aconselhado) poderia cair num erro destes e sentir-se tão surpreendido e indignado pelo desfecho.
3. Ao PSD e CDS-PP falta visão e estratégia a médio e longo prazo. A criação do parque industrial Tecmaia foi um projeto demasiado ambicioso, já que as empresas que o integravam não davam mostras de grande viabilidade futura, o que se veio a verificar com os sucessivos resultados negativos que culminaram na sua dissolução em 2012, por imposição da ‘troika’. Logo no momento da dissolução, a Câmara teve de transferir 850.000 € para a Tecmaia, fora os 656.000 € que o Município pagou em 2016, no âmbito de uma primeira reversão fiscal. A gestão da Câmara foi, de facto, mal sucedida, tal como o foi a gestão dos fundos imobiliários fechados nos quais investiu milhões, com elevados prejuízos para o erário público (Maia Imo, Maia Golfe, Praça Maior). O investimento sem controlo no imobiliário gerou perdas e dívidas avultadas para o Município, e isso restringiu fortemente o investimento em obras públicas e serviços, sobretudo nos anos em que a crise económica atingiu em força o país, deixando mais desprotegidos os cidadãos em situação de pobreza que a Câmara tinha o dever de apoiar.
Jorge Santos
Jurista e membro da Concelhia da Maia do BE