Faz hoje uma semana que a Europa viveu o horror de Paris na redação do Jornal Charlie Hebdo e está hoje nas bancas a melhor resposta que o jornal satírico podia dar aos executantes do atentado e ao resto do mundo. Os cartoonistas do jornal francês dão uma lição de coragem e firmeza na inconformidade.
Surpreendente é que na última semana tenham surgido tantas opiniões que demonstram não conhecer os princípios básicos de liberdades e direitos, tendo como argumento base “a minha liberdade termina onde começa a do outros”. Este argumento, tantas vezes repetido, é fruto do desconhecimento sobre qual é o enquadramento da sátira em sociedades que respeitam os princípios basilares dos Direitos Humanos.
A grande falácia é a relação criada entre humor e sátira. Apesar de poder recorrer ao humor, a sátira é uma forma de expressão que tem o objetivo de provocar mudanças na sociedade, incidindo geralmente sobre questões políticas e religiosas. A intenção é denunciar os males da sociedade, ridicularizando figuras que classicamente se querem tratadas com elevação moral. Chega mesmo a usar o grotesco para denunciar os defeitos morais do satirizado, usando alegorias que expõem o que se esconde para lá da fachada, quer isto dizer que o principal objetivo da sátira é mesmo social, político ou até moral. Criticar o Charlie Hebdo por não se ter contido no seu trabalho, que é satírico, é o mesmo que admitir a possibilidade de viver numa sociedade com limitações à liberdade. Abrir este precedente é perigoso, principalmente num período em que os extremos políticos crescem no seio da União Europeia, estes sim de ideologias irresponsáveis e limitadoras da liberdade. Admitir limitações na Liberdade de Expressão é abrir caminho ao totalitarismo.
A Liberdade de Expressão é um direito consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos e deve ser como quiser e questionar o que quiser. Não termina quando eu fico incomodado ou quando não gosto do que ela produz, não se amordaça em dogmas, ou se detém na conivência, não se encolhe às vontades , não se doma, não se verga. É um direito inalienável de qualquer Estado que se queira plenamente democrático. A diferença entre o indivíduo que se sente incomodado com uma expressão, do indivíduo que é injuriado por uma expressão, está prevista. O julgamento desta diferença faz-se posteriormente à produção da expressão, o que significa que todo e qualquer órgão ou cidadão, tem direito a exercer a sua Liberdade de Expressão sem qualquer censura, sem ceder a pressões, assumindo as suas responsabilidades.
Poder ser católico ou muçulmano livremente na Europa tem um valor inestimável, assim como ser ateu ou agnóstico e da mesma forma que um indivíduo tem direito à crença e à prática livre da sua religião, também o ateu tem direito a não ser crente e a expressar o que pensa das religiões e dos crentes. A Europa é de todos. Dos já europeus e dos que estão para vir. Na Europa, satirizar a Religião Católica ou a Religião Muçulmana, pode agradar a uns e desagradar a outros, mas não é nunca matéria que um Estado democrático que se preze deva censurar. Assim como existe o direito a crer em Deus, existe o direito em não crer. Podemos não gostar da forma que a sátira tem de se expressar e devemos criticar sempre que quisermos, sem nunca o censurar.
Admitir que os satíricos do Charlie Hebdo não devem ridicularizar as figuras como o fazem, é retroceder enquanto sociedade.
Durante séculos a Igreja Católica aliada aos Estados onde se inseria perseguiu, ameaçou, torturou e matou de forma bárbara milhares de pessoas e foram muitos que se opuseram com as armas que sabiam usar, entre as quais diversas formas de comunicar, como a pintura, a literatura, a ciência, e muitos deles foram condenados. Um deles cometeu a ousadia de afirmar que a Terra girava em torno do Sol. Esta ofensa contrariava o Geocentrismo e provocou a indignação da Igreja Católica. A fúria da Santa Inquisição condenou e executou o indivíduo. Chamava-se Galileu. É por sujeitos como este, que se recusam a conformar com o que está instituído erradamente, quer seja religioso, politico ou económico, que se realizaram grandes avanços no humanismo.
Imagino que todos percebam que a Charlie Hebdo não era um grupo de suicidas que se divertiam a provocar e imagino que seja fácil perceber que aqueles cartoons pretendiam alertar o mundo para problemas reais, como são o autoproclamado Estado Islâmico, como é a pedofilia na Igreja, ou como é o crescimento da extrema direita na Europa. Fizeram-no com as armas que sabiam usar. Não se calaram nem tiveram medo.
Não fosse o Charlie Hebdo e o atentado seria em qualquer outro lugar. A cultura ocidental é traição, logo é um possível alvo. Saibamos honrar os direitos e liberdades conseguidos por muitos e saibamos condenar quem devemos condenar.
«Sátira uma das inatacáveis liberdades do pensamento humano.»
Eça de Queiroz.
Viva a Liberdade!
Aldo Maia. 14 de janeiro de 2015