Não é porque estamos numa altura natalícia que escrevo isto. Mas é, porque a Paz constitui o quotidiano da cidade, quando assente na Justiça, sem vendas nos olhos. A humanidade, mais em concreto a cidade, onde se vive, e se está, constitui o bloco central da construção da cultura do cuidado. Como refere o bispo de Roma, papa Francisco, na sua mensagem para o Dia Mundial da Paz, que será em 1 de janeiro, as condições da crise sanitária, agravaram consistentemente as crises “climática, alimentar, económica e migratória, e provocando grandes sofrimentos e incómodos.” No concreto da cidade, primeiro patamar da cultura do cuidado, existem aqueles que perderam uma pessoa de família, um amigo e tantos que foram descartados e que sentem fome e sede de justiça. A cultura do cuidado, neste caso da cidade, é “para erradicar a cultura da indiferença, do descarte e do conflito, que hoje muitas vezes parece prevalecer”. Nesta pequena citação gostaria de referir a “cultura do conflito”, tão em voga na cidade, na cidade da Maia, nas respostas e contrarrespostas, num clima de hostilidade, própria duma imaturidade de aceitar o “outro”, como um “eu”, que possui as suas opiniões sinceras e honestas.
Não raras vezes os grupos políticos ou não se digladiam, gastando tempo e dinheiro, pelo cheiro de serem sujeitos do poder. O que está em causa não são diferenças de opinião, mas o exercício de poderes efémeros, tratados como ataques de armas mortíferas, caminhando para a guerra, e não para a Paz. Assim não se constrói a cidade, mas é amortalhada nos jazigos dos cemitérios. A pluralidade é nas pessoas não uma “arma”, mas a defesa de uma dignidade, e é ela que constrói a unidade para a cidadania. Por isso, existem várias opiniões organizadas, sejam políticas ou religiosas, que não se “combatem”, mas cimentam um diálogo poderoso que forma o parecer dos cidadãos e o usam como cidadania. As opiniões dos outros não se “combatem”, mas servem para (re)formular a melhorar as nossas opiniões, segam grupais, sejam individuais. Os poderes instalados só têm a aproveitar-se das opiniões como os poderes ainda não instalados, para melhor servir a totalidade dos cidadãos. Daí a fortaleza que se instala quando se ouvem uns e outros, num clima plural, onde nenhum tem a verdade, mas todos queremos caminhar para ela. Nenhuma equipa joga sozinha futebol, mas necessita sempre da outra, enquanto colaborante para existir jogo. A “cultura do cuidado” do outro também é assim, temos de cuidar dela, porque senão ficamos sós. Isso dita a ditadura, o fascismo, a intolerância, como já vemos em Portugal a surgir.
Mas a cultura do cuidado, de que nos fala Francisco, também é o cuidado de estabelecer uma relação entre o homem e a terra, como relação fraterna, como irmãos. Somos chamados a cultivar e a guardar a criação e não a delapidá-la. Encontramo-nos num ponto onde o Planeta Terra não pode mais aguentar ser uma “casa-jardim”, mas anula-se, mercê da nossa profunda estupidez. O cuidar da Terra, neste momento, é um último grito para a sua não extinção e os poderes continuam na sua sanha destruidora.
Não esqueçamos, também, do “cuidado como promoção da dignidade e dos direitos das pessoas”, dado que, diz Francisco, “o conceito de pessoa, que surgiu e amadureceu no cristianismo, ajuda a promover um desenvolvimento plenamente humano. Porque a pessoa exige sempre a relação e não o individualismo, afirma a inclusão e não a exclusão, a dignidade singular, inviolável e não a exploração. Toda a pessoa humana é fim em si mesma, e nunca um mero instrumento a ser avaliado apenas pela sua utilidade, foi criada para viver em conjunto na família, na comunidade, na sociedade, onde todos os membros são iguais em dignidade. E desta dignidade derivam os direitos humanos, bem como os deveres, que recordam, por exemplo, a responsabilidade de acolher e socorrer os pobres, os doentes, os marginalizados, o “nosso próximo, vizinho ou distante no espaço e no tempo”.
E surge o “bem-comum”, o bem viver – viver bem, é diferente -, uma bússola para um rumo comum, da fraternidade e da salvaguarda da criação, que são consubstanciados num nosso querer “Para educar em ordem à cultura do cuidado”, até porque não haverá paz, sem esta “cultura do cuidado”. “Não desviemos o olhar, empenhemo-nos cada dia concretamente por “formar uma comunidade feita de irmãos e irmãs que se acolhem mutuamente e cuidam uns dos outros.”
O melhor Natal possível e um Bom Ano de 2021!
Joaquim Armindo
Pós-doutorando em Teologia
Doutor em Ecologia e Saúde Ambiental
Diácono