O discurso do Presidente da República do passado dia 5 de Outubro, a propósito dos 110 anos da implantação da República, foi um discurso com mensagens muito claras e fortemente consensuais. De tal forma, que muito dificilmente se encontrarão argumentos sólidos para dele discordar.
Atrevo-me até a dizer que Marcelo Rebelo de Sousa fez uma intervenção própria dos tempos de pandemia e de crise económica, que infelizmente, todos estamos a viver, e que apelam a um maior sentido de responsabilidade e de comunhão, a um mais elevado sentido de Estado.
Dirão outros que o Prof. Marcelo fez uma intervenção própria de fim de mandato e de candidato que pretende ser reeleito com os votos de todos, da esquerda e da direita.
Seja como for, a verdade é que todos estamos de acordo que a recuperação económica que o país deve ambicionar não poderá servir apenas “alguns portugueses privilegiados, mas permitir que se ultrapasse a pobreza, a desigualdade e a injustiça social”. E que o caminho deve ser trilhado “sempre em conformidade com a ética republicana, que repudia compadrios, clientelas e corrupções”.
De igual modo, também não vislumbramos quem, com o mínimo de respeitabilidade cívica e política, não subscreva a ideia de que temos de continuar “a agir em liberdade, a saber compatibilizar a diversidade com a convergência no essencial, a sobrepor o interesse colectivo aos meros interesses pessoais”.
Sinceramente, acho que o Presidente da República fez o discurso que se impunha no momento presente.
Com efeito, não é demais recordar a necessidade de se promover uma boa aplicação dos fundos europeus que começarão a chegar brevemente a Portugal, no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência da União Europeia. Estamos a falar de muito dinheiro. Marcelo sabe que é uma oportunidade para o país que não se repetirá tão cedo. E reconheçamos, a história nesta matéria, nem sempre nos transporta para boas memórias.
Da mesma forma que subscrevo o apelo à afirmação do interesse colectivo em detrimento dos meros interesses individuais, designadamente nesta altura de grave crise social e económica, de duração ainda incerta, em que muitos cidadãos foram lançados para o caminho do desemprego e muitas empresas para a insolvência. Recorde-se que as previsões apontam para uma queda do PIB nacional superior a 8% neste ano de 2020 e uma subida da dívida pública para cerca de 140% do PIB, a rondar os 270 mil milhões de euros.
Tempos estes, em que todos os dias nos debatemos com a difícil tarefa de conciliar o funcionamento da economia com a salvaguarda da saúde pública. Em que o risco de se morrer da doença se confronta amiúde com o risco de morte pela cura.
E mesmo que se entenda, como alguns, que este apelo soou a recados para as negociações do Orçamento de Estado, que brevemente será votado na Assembleia da República, a verdade é que o Presidente da República, dentro da sua “magistratura”, não tem qualquer capacidade de determinar as vontades do Governo e da Oposição, muito menos de se substituir às mesmas, relativamente às legitimas opções que cada um tem e defende para o país. Que devem aliás, ser assumidas de forma plena e responsável.
Os portugueses quando elegeram o actual Parlamento, subscreveram diferentes programas políticos e “identificaram” os seus representantes.
O que tudo não significa que o Presidente da República não tenha ou não deva ter a sua própria visão sobre o que em cada momento melhor defende o superior interesse da nossa realidade colectiva, do nosso país.
E sejamos claros, é perfeitamente compreensível, que a poucos meses do término do seu mandato e do início da presidência portuguesa do Conselho da União Europeia, que Marcelo Rebelo de Sousa não deseje de todo uma crise política.
Sendo que no caso concreto, em que o actual Governo não dispõe do apoio de uma maioria parlamentar, é a este a quem compete em primeira instância, providenciar pelas soluções que garantam a desejada estabilidade política…
Paulo Ramalho