As notícias que nos chegam do outro lado do Atlântico parecem não ser animadoras: um homem que dizem ser tosco, bruto e informe está ao leme dos Estados Unidos e, um mês apenas sobre a sua tomada de posse, não deixa de surpreender tudo e todos com as sucessivas medidas que anuncia ou preconiza, com as quais diz querer recolocar a América – América first – no lugar cimeiro que, segundo repete nos seus pronunciamentos, ela já não ocupa.
Deste lado do Atlântico, toda essa nova maneira de fazer política e essa diferente febre com que Trump governa parece causar engulhos e preocupações a muita gente, como se fosse possível esquecermo-nos de que o novo Presidente dos Estados Unidos foi alcandorado ao seu cargo através do voto livre dos seus concidadãos, de acordo com as regras seculares que comandam os atos eleitorais norte-americanos.
De pouco nos serve, convém reconhecer, a grande incredulidade e a histeria generalizada com que os europeus acompanham o desenrolar da política norte-americana. E até já há quem pense que o impeachment de Donald Trump pode estar a caminho, para que o seu país (e outros países…) se reconduza ao bom caminho…
Para esses, talvez valha a pena trazer para aqui a Primeira Carta de São Paulo a Timóteo, sobretudo o ponto em que nela se diz que nós sabemos que a lei é boa, contanto que dela se faça um uso legítimo e tendo em conta que a lei não foi feita para o justo, mas para os maus e rebeldes, para os ímpios e pecadores, para os sacrílegos e profanadores, para os parricidas e matricidas, homicidas, impúdicos, pederastas, traficantes de escravos, mentirosos, perjuros, e tudo aquilo que está em contradição com a sã doutrina.
É bem possível que estas palavras de São Paulo tenham inspirado, de algum modo, as intenções e as ações com que Donald Trump nos surpreende todos os dias. Mesmo que assim seja, isso será, com certeza, fraco consolo para quem discorda do ar desabrido e do tom tantas vezes inconveniente do novo presidente norte-americano.
Para quem assim pensa talvez seja melhor recuperar os adjetivos que mais acima cataloguei Donald Trump – tosco, bruto duro e informe – e com eles ir em busca do Padre António Vieira e do seu Sermão do Espírito Santo.
É lá que se encontra um texto por demais conhecido mas que vale a pena recordar: arranca o estatutário uma pedra destas montanhas, tosca, bruta, dura, informe; e depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão e começa a formar um homem: primeiro, membro a membro e, depois, feição por feição, até a mais miúda. Ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos. Aqui desprega, ali arruga, acolá recama. E fica um homem perfeito, e talvez um santo que se pode pôr no altar.
Quero dizer, com esta longa citação, que nunca é tarde para confiar em que a arte, o bom senso e o saber fazer dos norte-americanos, – vertida nas suas instituições seculares que bebem inspiração na primeira e emblemática frase da Constituição do seu país: We, the People – saberão assumir o papel do estatuário e saberão como ele (malgrado a hipotética inspiração pauliana de Trump de que me socorri) tomar o homem em suas mãos, desbravar o mais grosso e, tomando nas mãos o maço e cinzel da sabedoria, moldá-lo às realidades e necessidades do seu País e do mundo. Um mundo que cada palavra sua e cada gesto seu indubitavelmente influencia.
Joaquim de Matos Pinheiro