Temos sido inundados pela comunicação social com notícias respeitantes a más práticas médicas e a supostos ordenados milionários. A este acontecimento uniu-se uma forte contestação nas redes sociais, à qual, evidentemente, não me alheei.
Contudo, e como tem vindo sendo meu hábito, neste mesmo espaço, venho dar alguns factos, eventualmente condicionados pela minha perspectiva, mas que visam unicamente dar a possibilidade ao leitor de ter uma opinião mais fundada sobre tudo o que se vai dizendo, e dizendo que se disse.
Importa dizer que qualquer vida humana é, e sempre será, a mais nobre das condições. Por isso, qualquer perda deve fazer-nos reflectir e programar estratégias de melhoria.
Dizendo isto, começo por reafirmar o que sempre aqui escrevi: é impossível com cortes cegos manter qualidade. Portugal conseguiu manter estatísticas com poucos recursos… mas o problema é que uma morte, mesmo que estatisticamente insignificante é moralmente muito significativa, e … inaceitável.
Neste caso importa dizer que quando não há dinheiro para abrir blocos, deixa de ver dinheiro para toda uma equipa multidisciplinar que vai desde a equipa de limpeza, á farmácia, à enfermagem, a todos até chegar aos médicos. Os médicos são mesmo a ponta do iceberg tendo que tudo o restante funcionar e bem, para que tudo decorra com normalidade.
Lê-se dos ordenados milionários dos médicos. Permita-me o leitor que desafie qualquer um que souber de um valor que seja um décimo daquele que é publicado em alguns jornais que faça o favor de entrar em contacto porque estou muito interessado.
A verdade é que os médicos, em quase todas as especialidades, trabalham muito para além do seu horário. Ainda hoje no dia em que escrevo, cheguei mais cedo porque tinha de organizar a minha agenda, mas perante o número de doentes que me esperavam não fui capaz de fazê-los esperar. Terminei igualmente mais tarde, e quem sofreu foram os meus filhos: um ficou à porta da escola porque o pai teve esse coração frio de médico para ver todos os doentes que podia, e o outro acabei por pagar um valor adicional pelo mesmo atraso (valor que ninguém me restitui).
Sem contar com os tempos de estudo, os tempos em que sai mais tarde e chega mais cedo, a maior parte dos médicos trabalha mais de 70 h semanais, sendo que o valor hora para um especialista andará à volta dos 9 euros limpos, e para um interno da especialidade pelos 5 eur limpos. Ou seja, a responsabilidade de salvar vidas, de tomar decisões todos os dias custa o valor em cima descrito. Repito, se algum dos leitores souber de um lugar com contrato milionário enunciado na comunicação social, por favor diga-me!
Não quero com isto desculpar qualquer atitude de ninguém. Em medicina como em todas as profissões há sempre os bons e os maus profissionais. Agora sem qualquer tipo de arrogância a verdade é que um médico estuda no mínimo 6 anos, e até complementar a sua formação tem no mínimo mais 5 pela frente que dá um total de 11 anos para ganhar 9 eur à hora. Não posso deixar de referir todos os outros profissionais de saúde como os técnicos superiores, os técnicos de diagnóstico e terapêutica ou os enfermeiros, cujos salários ainda são inferiores.
Bem sei que medicina é um dom, bem sei que ninguém obrigou os médicos a escolher o curso, bem sei que todos nós médicos sabiamos o que nos esperava, o que não compreendo é esta tentativa de manipulação de informação para denegrir a imagem de uma profissão, de uma classe, mas sobretudo de todo um SNS que tão nobremente tem sobrevivido.
Estimado Leitor, neste momento cerca de 200 jovens médicos ficaram sem acesso à especialidade. Quer isto dizer que Portugal formou 200 médicos a mais para a sua capacidade. Reformulando, estamos a formar médicos para a emigração.
Reformar é preciso. Restruturar número clausus é urgente. Restruturar a oferta de saúde é emergente. Rever carreiras e incentivos deixo ao cuidado da opinião do leitor.
No meio disto tudo parece haver um gato bem escondido, mas com o rabo de fora. A ver vamos no que dá!
Ricardo Filipe Oliveira,
Médico;
Doc. Universitário UP;
Lic Neurof. UP;
Mestre Eng. Biomédica FEUP ,
Não escreve ao abrigo do novo acordo ortográfico.