O Amanhã da Criança é uma instituição de Solidariedade Social maiata com mais de 40 anos de história. Nasceu da vontade de alguns jovens em fazerem “alguma coisa aqui pela terra” e também de alguma ousadia.
José Manuel Correia, presidente da instituição desde a fundação, conta-nos que há muitos anos havia uma escola que era frequentada por miúdos muito pobres e que essas crianças às vezes só comiam uma tigela de sopa o dia todo. Era preciso “criar uma série de coisas para os miúdos terem melhores condições” e, logo depois do 25 de abril, foi isso que um grupo de jovens realizou. José Manuel Correia fez parte do grupo que tomou de assalto a quinta, em Águas Santas, onde é hoje O Amanhã da Criança.
A história tem tanto de ousadia como de persistência. Surgiram muitas ocupações na altura e, ao saberem que o palacete ia ser oferecido, os jovens invadiram a casa e nunca mais de lá saíram.
Começaram a trabalhar e, quando já tinham alguma obra feita, o proprietário regressou e quis a quinta de volta. Andaram em tribunal alguns anos e perderam. Tiveram duas ordens de despejo mas conseguiram manter-se por lá. Decidiram negociar e, com a ajuda da Câmara Municipal da Maia, entenderam-se com o proprietário. O acordo foi fechado por 155 mil contos e, desde então, “temos vindo a crescer paulatinamente”.
José Manuel Correia, hoje com 67 anos, é presidente da instituição há cerca de 42 anos. Entre avanços e recuos na dificuldade de se manter a casa, este foi o único presidente que O Amanhã da Criança conheceu até agora.
Uma vida dedicada voluntariamente à causa e dividida com a profissão de médico e outras atividades políticas. Pelas novas regras das IPSS’s, daqui a seis anos, José Manuel Correia já não poderá ser presidente. Uma realidade que encara com alguma preocupação porque ainda “há muito para se fazer”.
Agora reformado da medicina, continua empreendedor e possui vários negócios. Começou n’O Amanhã da Criança antes de se tornar médico e ainda continua na instituição onde a participação nos órgãos sociais é de cariz voluntário.
O NOTÍCIAS MAIA conversou com José Manuel Correia sobre o caminho que tem sido feito pela instituição e, entre outros assuntos, quisemos saber como foi vivida a pandemia por quem cá ficou.
Notícias Maia (NM): Como tem sido a evolução do Amanhã da Criança?
José Manuel Correia (JC): De muito trabalho, muita persistência e, acima de tudo, alguma ousadia. Em alguns assuntos, os meus colegas de direção ficam com medo, mas eu arrisco sempre. Acho que temos levado o barco a bom porto.
Começámos inicialmente com um jardim-escola com seis crianças e, hoje, temos uma creche com 75 crianças, um jardim-escola com 115, um ATL com 80 crianças, um centro de estudo com 52, um centro de dia com 50 utentes, um serviço de apoio domiciliário com 45 e temos uma residência sénior com 60 pessoas. Esperamos ainda começar a construir, em quatro ou cinco meses, a nova creche-berçário e queremos também criar uma residência para jovens com patologias na área da psiquiatria.
Isto dá muito trabalho e muitas dores de cabeça. É preciso andar sempre no limite na parte da tesouraria.
NM: E como sobrevive a instituição?
JC: Temos as cotações do Estado que, na minha opinião, são mal pagas. Temos as mensalidades que estão indexadas ao rendimento das famílias e, para um ou outro caso de obras e compra de viaturas, temos tido o apoio da Câmara Municipal da Maia. O resto é fazer quase um malabarismo na gestão. O dinheiro é muito pouco.
Nesta pandemia, só em mensalidades, perdemos 155 500 euros. E a nossa despesa aumentou em quase em 20% por causa dos produtos de proteção e higiene. Isto está a causar-nos uma dificuldade muito grande. De facto, as IPSS’s têm cada vez mais dificuldades porque os apoios estão sempre a diminuir. Nos últimos 14 anos, nós devemos ter menos 18 ou 20% do valor da cotação do Estado. Depois, as famílias também vão perdendo rendimentos. É uma gestão difícil para honrar os compromissos.
NM: A residência sénior é a única que não tem acordo com a Segurança Social?
JC: Eu não quis acordo com a Segurança Social, nem quero tão cedo, porque o Estado dá à volta de €400 por cada idoso. O edifício todo que fizemos e os arruamentos ficou-nos por 3 milhões. Nós recebemos, dos fundos comunitários, 1 milhão e 400 mil euros e a Câmara ajudou-nos em cerca de 689 mil euros, mas tínhamos o resto para pagar. Se eu tivesse essas mensalidades indexadas ao valor de cada idoso, não conseguia pagar ao empreiteiro. Por isso, durante uns tempos largos vai ter de funcionar assim.
NM: Vocês têm esta diversidade geracional de crianças e idosos. Faz parte dos vossos ideais manter esta convivência?
JC: Nós mantemos essa interligação, sim. Neste período não o estamos a fazer, como é evidente mas, normalmente, todos os dias as crianças têm várias atividades que depois mostram aos avozinhos. E o contrário também. Eu acho que é muito importante principalmente porque os idosos têm sempre alguma relutância em vir para uma casa destas. O entendimento geral do idoso é que o filho o está a querer abandonar. O que nem é verdade porque, hoje em dia, é difícil dar suporte e aqui os utentes até estão melhor. Mas como eles acham isso, esta é uma forma deles se manterem ativos. Eles tratam as crianças como se fossem os netos, é muito engraçada esta interligação.
NM: Quais as maiores dificuldades da instituição?
JC: As dificuldades são sempre financeiras. Se nós queremos prestar um serviço de qualidade e ter boas instalações, isto fica tudo muito caro. É muito difícil, chegamos ao fim do mês e nunca sobra nada. O valor por criança e por idoso que o Estado paga, está desatualizado. As coisas são mais caras do que aquilo que eles dizem. E os trabalhadores das IPSS’s, no geral, ganham muito pouco para o trabalho que fazem. Para o trabalho ser bem executado, com carinho, amor e dedicação, deviam ganhar mais. É uma responsabilidade muito grande para ser mal remunerada. Eu sei disso, mas não posso dar mais, porque não tenho.
NM: Como é que foi encarada a pandemia de Covid-19 na instituição?
JC: Isto foi terrível. Eu vivi aqui momentos muito difíceis e vivi-os de uma forma solitária. Eu tive a informação de que uma estagiária tinha acusado positivo e liguei imediatamente com a Delegação de Saúde para entender que medidas deveríamos tomar. Não consegui resposta e enviei um e-mail com a informação. Nem 24 horas depois tive conhecimento de uma morte. Vim para cá e a informação inicial foi que tinha sido morte natural. Da delegada de saúde, não consegui nada, então pedi ajuda à Câmara. Conseguimos que todos fizessem testes e começaram a aparecer os casos positivos.
Era preciso encontrar soluções para tirar daqui os idosos para proceder à desinfeção das instalações e, depois, arranjar equipas em espelho. Fizemos uma reunião e chegou-se à possibilidade de levar as pessoas para o hotel. O problema é que o hotel estava em lay-off e não tinha nada. Mas, em duas horas, conseguimos que estivesse tudo pronto para os receber. A Câmara, a Proteção Civil e a PSP de Águas Santas foram inexcedíveis neste processo.
Andámos depois um mês ainda com alguns casos positivos e sempre a trabalhar para que não houvesse mais contágios. Agora está tudo bem nesse sentido.
NM: Quantas pessoas morreram?
JC: Morreram sete pessoas. Em 67 utentes, só nove é que não contraíram o vírus, um deles é o meu pai. Com 93 anos, passou-lhe tudo ao lado.
“Muitas pessoas abandonaram o barco mas a minha gratidão é para quem ficou”
NM: Foram meses difíceis?
JC: Muito. Eu andei uns 10 dias a trabalhar 19 horas por dia. Muitas pessoas abandonaram o barco mas a minha gratidão é para quem ficou. Tivemos 17 funcionários que, durante 47 dias, estiveram aqui 24 horas. Pessoas com filhos que não foram a casa durante estes dias. Foram excecionais.
NM: A Residência Sénior foi a única das valências a manter a atividade?
JC: Sim, de resto foi tudo suspenso com a ordem governamental. Agora as coisas estão a ser retomadas mas há uma que continua suspensa por indicação da Direção Geral de Saúde. O Centro de Dia ainda não funciona e eu acho que vai ser um caso em que se morre da cura. Nós temos ido visitar estes utentes e levamos-lhes comida, mas são pessoas, muitas com mais de 90 anos, que estão sozinhas em casa, abandonadas.
NM: E como tem sido a retoma das atividades?
JC: Na Residência Sénior já se está a chegar à normalidade, mas sempre com maior distanciamento nas atividades. A única coisa que não está regular são as visitas. Os utentes têm visitas mas têm de ser marcadas, com distanciamento e só com meia hora. No resto das atividades está tudo a correr de forma natural dentro dos condicionalismos que nós impusemos de acordo com a Direção Geral. Estamos a ser rigorosos nesse sentido.
NM: Como se espera o futuro próximo?
JC: Costuma-se dizer que o futuro a Deus pertence, mas a ideia que tenho, é que as coisas se vão agravar. Mas também acho que o país não tem capacidade económica de voltar a parar. Nós vamos andar a pagar esta paragem muitos anos. Vamos ter que nos habituar a conviver com o vírus e a levar uma vida mais ou menos normal.
NM: Está aqui desde o início sem remuneração. Qual é a recompensa?
JC: A recompensa é de que fiz alguma coisa pela minha terra. E, acima de tudo, é uma atividade que gosto e me sinta bem a fazer.
Tenho a consciência tranquila de todos os anos que assumi esta presidência. Só prejudiquei a minha vida pessoal e a minha família. Mas eu gosto disto, sinto-me bem aqui.