Continua bem presente na memória de alguns maiatos a antiquíssima indústria de moagem das margens do rio Leça. Essa lembrança quase que desperta os cincos sentidos, o cheiro de farinha acabada de moer no ar, o som da mó agitada pela generosidade do Leça, o carro de bois que percorria lentamente mas com vigor carregando um sem número de sacos de farinha que se espalhavam não só pelo concelho da Maia, mas também, pelas populações vizinhas.
Por: Nelson Maia, Janeiro de 2020
Esta peculiar indústria de características sazonais e artesanais era a segunda mais significativa, sem nenhum tipo de dúvida, só superada pela agricultura, bem enraizada económica e socialmente, liderada pelos grandes proprietários e pelos poderosos lavradores que dinamizavam toda a estrutura económica da sociedade maiata.
Existem alguns núcleos de moinhos de água pelo território que vale a pena serem redescobertos a pé ou de carro. Escolhi o singular núcleo de moinhos de Milheirós e decidi percorrê-lo a pé.
Era um dia invulgar de calor, demasiado calor para um dia outonal como aquele. Ao transpor a estreitíssima ponte de Alvura e já protegido pela frescura das árvores frondosas que ladeavam o caudal do rio Leça, avistei um pequeno grupo de casas habitadas e outras mais antigas já em ruínas, movido pela incerteza decidi descer a rua, quando uma senhora me abordou confundindo-me com um funcionário da EDP. Apresentei-me e a Dona Maria convidou-me gentilmente para dentro da sua casa para estudar os moinhos. Dentro do pátio da casa de dona Maria, pude identificar os moinhos da família Jericota, o moinho mais pequeno religiosamente fechado, aparentando estar em boas condições e uma enorme mó em granito num canto.
Dona Maria estava ao longe a estender roupa e a ver o que eu estava a fazer. De repente, aproximou-se e antecipou-se às minhas perguntas, explicando que era caseira e a casa pertencia à família dos antigos moleiros (Jericota), o moinho que estava fechado parecia ainda funcionar mas não tinha a chave. Na outra extremidade do pátio, estava outro moinho, este já em ruina total, assemelhando-se a uma pequena muralha medieval com uma estreita escadaria exterior onde a vegetação ribeirinha já tinha dado conta do recado quase ficando à vista as saídas de água. De assinalar o excelente trabalho de cantaria. Dona Maria parecia sentir falta de conviver com alguém, notava-se que estava condenada à solidão rodeada somente de ruínas.
Por recomendação da dona Maria, prossegui a Rua da Ponte de Alvura para estudar os moinhos do Lugar do Pinto. Ao dobrar a esquina em direção à Rua do Pinto, ainda se ouviam as fortes correntes das águas do rio. Seria o sítio ideal para se usar as suas energias para a moagem de cereais.
Descendo sem nenhuma dificuldade a Rua do Pinto, encontro uma ponte mais robusta do que a do Alvura, aqui vou ao encontro do subnúcleo Lugar do Pinto, onde se encontram duas construções bem distintas uma da outra. A primeira é o “Moinho com Telhado de Granito”, uma pequena estrutura rara com um característico telhado de granito que o torna muito curioso. Extremamente bem conservado e limpo, na sua única divisão não tem qualquer equipamento que assinale qualquer vestígio de atividade ligado à moagem de cereais. Ao lado, encontra-se a “Casa dos Sete Moinhos” uma edificação bem mais impetuosa, preparada para laborar o ano todo graças ao esforço não só do caudal do rio, mas também, ao engenho dos 4 moinhos de rodizio de 2 pisos com o total de 23 rodas.
De facto existe aqui uma confusão ao apelidar esta construção de “Casa dos Sete Moinhos”, na verdade nunca existiram 7 moinhos mas sim 7 saídas de água, que ainda hoje estão elegantemente perfiladas sob as correntes do rio.
O rio tem um lugar de destaque neste tipo de atividade, o rio Leça foi outrora bem mas límpido, era comum avistar: barbos, bordalos, escalos, bogas e trutas. Antigamente este recurso sagrado oferecia vitalidade não só á fauna e flora, como também ao próprio Homem, que dele soube tirar partido para a sua subsistência.
São Mamede te levede
São Vicente te acrescente
São João te faça pão
E o nosso Senhor te deixe a sua bênção
Era esta a benzedura do pão após o pão amassado. Pão alimento basilar na nossa mesa, por isso, cheio de conotações sagradas. Este alimento foi sustento nos anos mais difíceis da nossa humanidade. A indústria moageira soube dar resposta aos anos terríveis da fome e da guerra, contribuindo com a sua produção, ainda que com irregularidade. Contudo, nunca foi reconhecida a sua devida importância, a lavoura era demasiado forte para ser posta de parte, aliás os operários dos moinhos eram essencialmente agricultores a tempo inteiro, o trabalho nos moinhos era sobretudo sazonal (o inverno era o período mais produtivo devido à abundancia de água), havendo relatos de precariedade e vários casos de exploração infantil.
Os moinhos funcionavam essencialmente com estruturas unifamiliares que habitualmente viviam no piso superior. A vida fervilhava à volta do moinho, especialmente na indústria artesanal. Ferreiros, cesteiros, carpinteiros, serralheiros, canteiros eram presença assídua nos ambientes moageiros.
Aos poucos o sector entrou em decadência, a modernização lenta e a indústria pouco digna e competitiva, fez com que outro tipo de indústrias ganhassem terreno, arruinando por completo esta milenar atividade. O modo de vida das comunidades ribeirinhas quase esquecida pelos seus conterrâneos foi-se diluindo nas correntes do Leça e dos seus afluentes.
Fazendo o périplo dos moinhos maiatos nas zonas de: Águas Santas, Gondim, São Pedro de Avioso, Folgosa, Moreira, Barca, São Pedro Fins, Maia, Nogueira, Vermoim e Milheirós encontramos um número infindável de agudes, levadas, caneiros e prezas, indícios que nos fazem reconhecer a mestria e o engenho do saber potenciar os recursos da própria natureza em benefício próprio. Infelizmente já se perdeu grande parte do património para prolongarmos essa viagem e entendimento no tempo de uma maneira mais ampla. No entanto, ainda existem vestígios patrimoniais razoáveis para que estabeleça um projeto museológico vivo e consistente para que os moinhos da Maia não se percam no tempo e que perdurem para gerações futuras.