Contas feitas, o maior ganho em apresentar um pedido de Habeas Corpus materializa-se no levantar do véu de detalhes de um processo mediático do qual pouco deveria se saber, mas até se sabe de mais. Aliás, ao contrário do que o arguido escreveu ao Diário de Notícias (na quarta carta, desde que foi detido, enviada por sua iniciativa e consciência aos meios de comunicação), sabem todos de mais. Neste pressuposto, aquele que intervém no processo invocando o interesse público (desde que não o invoque numa folha de jornal) também tem legitimidade para saber e para fazer saber.
Saiu à rua a informação de que o ex-Primeiro-Ministro em prisão preventiva tinha um bilhete de avião para o Brasil com data de 24 de Novembro; a sua detenção ocorreu no dia 21, depois de adiar duas vezes a viagem de regresso. Falando-se pela primeira vez desse voo, a defesa sublinhou que Sócrates “entregou-se” e que “sabia ao que vinha quando veio para Portugal”[1] . Então Sócrates sabia que o esperavam no aeroporto e, apesar de ter ainda mandado tirar um computador lá de casa, benevolente com o Sistema Judicial (que ora critica com adjectivos rocambolescos, todavia, sem insistir na sua inocência…) se decidiu entregar voluntariamente? Ou, ao invés, agora dá jeito ter esse argumento e, portanto, sabendo do mandado de detenção, há que se entregar e, a seu tempo, invocar oportunamente um bilhete de avião do qual até nem desfrutou para se aproximar quiçá dos queridos ares venezuelanos? E nem me vou alongar a partir da pergunta não respondida sobre quando esse bilhete de avião foi emitido, pois abriria ainda mais hipóteses neste exercício.
No meio dos adjectivos rocambolescos no seu Tratado escrito a tinta vermelha de quem não admite a prática do Sistema que todos nós, a nossa História e as nossas influências culturais continentais arquitectaram, o Senhor ex-Primeiro-Ministro diz que o Segredo de Justiça, esse, “só a defesa está obrigada a cumpri-lo”.
É neste momento que me confesso não saber para onde virar: se insisto na manipulação desse novo dado caracterizador da detenção fora de flagrante delito, prevista na lei mas que muitos ignoraram para criar uma onda de consternação enquanto não se concretizava as razões para esse acto extremo do processo penal; ou se me debruço na muito debatida fragilidade do Segredo de Justiça e do seu (não) respeito por aqueles que alcançam de forma privilegiada o que aquele, o coitado do Segredo, pretende reservar.
Mas então fico-me pelo óbvio e transversal: sobre ambos os assuntos é óbvio o ascendente do ex-Primeiro-Ministro.
Assim me parecem menos desadequadas a detenção e a medida de coacção. Se há algo para contestar, o arguido que recorra da medida de coacção; sim, o Sistema rancorosamente criticado – atenue-se aqui a minha ironia, pois imagino que qualquer detido ou preso terá comentários inflamados a prestar e a sua circunstância é atenuante no julgamento dessas queixas – não é assim tão limitado e o seu Advogado já deu a entender que ou tem isso em mente ou, naturalmente, sabe que tinha essa via, mas, enfim, não vale a pena ir por aí…
Madalena Nogueira dos Santos
Advogada e Escritora
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[1] – Declarações do Advogado de Defesa Dr. João Araújo, publicadas no jornal SOL no dia 03-12-2014.