As condições de higiene e o tratamento dos idosos nos lares portugueses voltaram a ser notícia a propósito da pandemia.
O relatório do surto de covid-19 no lar de Reguengos de Monsaraz onde morreram 18 pessoas é revoltante.
As condições de higiene e o tratamento dos cães e gatos nos canis portugueses voltaram a ser notícia a propósito dos incêndios de verão.
O que aconteceu no canil ilegal de Santo Tirso onde morreram carbonizados 54 animais é revoltante.
Dois eventos ainda em investigação que chocaram o país e em que poderá inclusivamente estar em causa actividade criminosa. Em ambos são os mais fracos e dependentes as vítimas.
As semelhanças terminam aí.
No entanto a propósito destes eventos ora relatados, até hoje proliferam vozes indignadas que alegam que o povo português se escandaliza mais com o que se passa nos canis do que com as condições nos lares.
Comentários do género “Há lares de idosos com piores condições que canis (…)”, “Se fosse um cão ou um gato era escândalo, mas como é num lar.…” e outros que tais, que tenho lido e ouvido repetidamente nos últimos tempos, além de não corresponderem à verdade são desonestos do ponto de vista intelectual.
Ademais contêm em si mesmos uma incoerência: somos mesmo um país que compara cães a idosos?
Somos mesmo um país que entende que não podemos gritar de revolta por animais de companhia acorrentados morrerem queimados sem lhes darem a hipótese e a possibilidade de se salvarem porque há idosos a sofrerem maus tratos em lares?
Existe um numerus clausus para revoltas que um cidadão pode sentir?
Estaria contudo a ser hipócrita se não referisse que os animais necessitam sim de uma protecção acrescida (mas não uma indignação maior). Tal prende-se tão só com o facto de não terem voz própria ou esta ser ainda muito recente.
Apenas em 2017 lhes foi reconhecida no nosso país a sua natureza de seres vivos dotados de sensibilidade. Só a partir dessa data passaram a ter um estatuto jurídico autónomo das coisas em geral. E isto mesmo tendo sido criminalizados em 2014 os maus tratos e o abandono de animais de companhia – que portanto durante três anos continuaram a ser propriedade dos donos mesmo que estes não pudessem dispor deles como entendessem – .
Ainda assim o homem que esventrou a sangue frio uma cadela grávida, o primeiro e único condenado a prisão efectiva por maus tratos a animal de companhia em Portugal, recorreu da sentença e viu a sua pena ser suspendida em segunda instância. Pelo que até ao momento (salvo erro) ainda ninguém foi efectivamente preso por maus tratos a animais de companhia, e não foi com certeza por não terem chegado aos tribunais os crimes mais hediondos. Falta coragem.
O abandono sazonal dos animais de companhia continua a ser uma realidade. Continuam a morrer cães e gatos trancados em casas sem acesso a água ou comida. Ou torturados gratuitamente. Por brincadeira ou para passar o tempo.
E isto tendo em conta apenas alguns dos actos contra animais de companhia e não aos flagelos dos animais em geral.
Ignorar que isso acontece porque existem humanos que também sofrem é partir de uma premissa inquinada pela demagogia.
Principalmente quando a criminalização dos maus tratos a idosos e abandono em lares também já foi discutida e chumbada no parlamento.
Aqui não se trata de proteger os que não têm voz própria nem de criar um novo estatuto jurídico porque este já existe à nascença. Trata-se de um governo falhar nas soluções assistenciais e na sua função de apoio social e tentar tratar os sintomas e não a causa pela via da criminalização.
Devemos todos lutar por um país em que não existam maus tratos em lares, canis, prisões, creches e em todos os locais assentes numa relação de dependência e debilidade de uma parte face a outra (sim estou a incluir violência doméstica).
Do mesmo modo cabe sobretudo ao Estado mas também a todos nós zelar por que tal não aconteça.
Angelina Lima
A autora escreve segundo a antiga ortografia